Os disfarces da malvadeza humana

29-08-2010 17:59

 


Arte PB

Os disfarces da malvadeza humana

 

País desperta para o problema do bullying, presente também na internet

 

SILVIA KOCHEN

 

Vanessa Cristina Santos Rato hoje tem 20 anos, mas não esquece como foi complicado o início de sua vida escolar. Ela foi alvo de desdém por parte das coleguinhas de classe da primeira à quarta série do ensino fundamental. “Havia um grupinho de umas dez meninas na sala que vivia contra mim; elas diziam que eu gostava do namorado de uma, que tinha pegado algo de outra...” A fofoca a isolou das demais meninas da classe, e ela passou a se relacionar mais com os meninos, jogava bola com eles e não dava atenção ao que elas faziam. Enquanto a escola ignorava o problema, Vanessa ganhou o apoio de sua família, que lhe ensinou que o importante é estar com a consciência limpa e gostar de si mesma. “Acho que se não tivesse o amparo familiar, eu teria dificuldade de superar aquilo e hoje seria meio doidinha”, diz.

Com o passar do tempo, Vanessa foi aprendendo a se defender das intrigas. “Comecei a responder às provocações e a perguntar a quem me hostilizava por que fazia isso”, conta. Aos poucos, as fofocas foram cessando. Recentemente, Vanessa cruzou por acaso com uma das meninas que a maltratava. “Ela tentou levar papo, mas cortei.” Em sua avaliação, aquele período serviu para que aprendesse a não se envolver em nenhuma forma de violência moral. Nem todos, porém, têm a sorte de Vanessa, que graças ao apoio familiar saiu ilesa do episódio. Na maioria das vezes, esse tipo de agressão costuma passar despercebido em nossa vida diária e só é reconhecido depois que o estrago foi feito.

É difícil encontrar alguém que nunca tenha presenciado ao menos uma situação em que uma pessoa foi humilhada, excluída, intimidada, exposta, ameaçada, ofendida... Comportamentos desse tipo eram vistos como corriqueiros e “normais”, ou seja, tidos como algo que não pode ser mudado. Só recentemente, quando receberam a denominação de bullying, é que a sociedade passou a reconhecer o problema e se mobilizar para combatê-lo.

Definir bullying não é difícil. Trata-se de uma agressão intencional e continuada, que pode ocorrer de várias formas, desde as mais sutis, como um leve comentário maldoso, até as mais diretas, como a violência física pura e simples, geralmente precedida de algum tipo de agressão verbal. Pouca gente, no entanto, é capaz de reconhecer o bullying no dia a dia. Ele costuma estar presente em locais que concentram pessoas, como escolas, empresas ou redes sociais da internet. No primeiro caso, costuma ser chamado de bullying mesmo; no segundo, normalmente o nome usado é assédio moral; e no último, o termo adotado é cyberbullying.

Os efeitos da violência moral podem ser devastadores na vida de suas vítimas, mas frequentemente também há grandes danos causados a toda a comunidade onde ela ocorre. Basta lembrar que a maioria dos casos de massacre em escolas nos Estados Unidos e na Europa é promovido por adolescentes que foram vítimas de bullying praticado pelos colegas. O assédio moral no trabalho tem como consequência inúmeros problemas de saúde – como hipertensão, cardiopatia, depressão... –, que podem levar até mesmo à morte. O fenômeno do cyberbullying ainda é recente, mas já é apontado como fator responsável por casos de suicídio de adolescentes em diversos países. Por isso, o bullying se tornou um desafio para os sistemas de saúde pública, judiciário e educacional no mundo moderno.

Tormento insidioso

 

 

O bullying na escola é muito poderoso por ocorrer num espaço de convivência privilegiado, onde se encontra muita gente, e seus efeitos são perversos e difíceis de superar. Quem diz isso é a psicopedagoga Kátia Pupo, que estudou profundamente o tema em sua tese de mestrado, defendida em 2007. Ela conta que foi um fato ao acaso que a despertou para o problema, em 2003. “Havia um aluno novo na nona série, que era ridicularizado na sala por dois outros estudantes. Os dois tiravam o tênis e o empurravam para o lado dele, pedindo-lhe que devolvesse o calçado. Um dia, o menino se recusou a devolver o tênis e um dos agressores o ameaçou com um canivete. A escola só tomou conhecimento do fato quando a mãe do aluno agredido denunciou o ocorrido e pediu a transferência do menino.” Os dois agressores, então, foram expulsos.

Esse episódio teve vários aspectos surpreendentes. Um deles é que nenhum professor havia notado o que acontecia. “Em uma sala de aula com 30 alunos, durante as atividades acontecem tantas coisas simultaneamente que algo assim passa despercebido pelo professor”, diz Kátia. Ao discutir o caso com os outros alunos, a psicopedagoga ficou ainda mais perplexa. Eles afirmaram que fatos como aquele “sempre existiram e sempre existirão, e os adultos não podiam fazer nada”. Diante disso, Kátia decidiu estudar a questão da violência moral e tratou do tema em seu mestrado.

Em seu trabalho, a pesquisadora aplicou um questionário a 96 estudantes, da sétima série do ensino fundamental e do segundo ano do ensino médio, de escolas públicas e privadas, divididos igualmente entre meninos e meninas. No questionário, era apresentada uma cena de violência moral branda, em que um aluno ou aluna (aluno para os estudantes do sexo masculino e aluna para as do feminino) é desrespeitado(a) na fila da cantina e impedido(a) de comprar seu lanche. Em seguida, era solicitada a avaliação dos alunos para dez questões. Kátia resolveu concentrar seu estudo em três delas, por ser as que tiveram respostas mais representativas de uma tendência.

A primeira dizia respeito à maneira como os estudantes se sentiriam naquela situação. Predominou a resposta de que houve um prejuízo concreto, já que a vítima de bullying não pôde tomar seu lanche, mas vários estudantes também disseram que teriam sentimentos de inferioridade e de impotência diante da ameaça. Alguns mostraram preocupação com a injustiça da situação, mas também houve uns poucos que revelaram ter uma vontade contida de reação ou o desejo de enfrentar os agressores. “O que é gritante na pesquisa é que a autoimagem negativa predomina, e a pessoa se responsabiliza pela própria situação”, diz Kátia.

A segunda questão trabalhada pela psicopedagoga era o que os estudantes fariam para resolver o problema. Surgiu aí uma nova questão. Mais de um terço (36%) deles indicou a agressão física como reação ao bullying. As principais respostas, a seguir, eram que chamariam um adulto; não fariam nada, para evitar confusão; defenderiam seu direito de comprar o lanche com uma postura firme, mas sem agressão; e tentariam o diálogo para resolver o problema (apenas 4% deram essa última resposta). “Isso indica uma descrença generalizada no poder do diálogo”, analisa a pesquisadora.

A terceira questão que chamou a atenção de Kátia se referia à mudança de situação se a vítima de bullying, no caso, fosse de outro sexo. “O que me chocou nesse ponto é que 80% das meninas achavam que os meninos resolveriam isso com agressão física, enquanto os meninos pensavam que as meninas teriam uma gama maior de possibilidades de ação, como diálogo, atitude firme etc.”, observa. Ela conclui que “as meninas têm uma visão equivocada em relação aos meninos”. A pesquisadora acredita que a ideia de que a agressão poderia oferecer solução para a cena de humilhação apenas reflete condições de nossa própria sociedade, que não é solidária nem tolerante; pelo contrário, estimula a competição.

Hoje, Kátia trabalha em um dos mais conceituados colégios particulares de São Paulo como coordenadora pedagógica do ensino médio. Lá, em um universo de 250 alunos, atualmente há três casos identificados de bullying. Ela acredita que o problema sempre existiu, mas hoje as pessoas e as escolas estão mais atentas e, por isso, parece mais frequente. Ela critica, porém, a onda de generalizações que acompanha a divulgação da questão.

“Tenho visto matérias nos jornais que alertam os pais a atentar em certas coisas no(a) filho(a), como muita tristeza, por exemplo, para saber se é vítima de bullying, o que é um absurdo, pois isso poderia ter outra causa, como uma briga com a(o) namorada(o)”, explica a psicopedagoga. Ela também contesta a noção de que há um perfil de vítima de bullying, pois nem todo gordinho vai ser alvo desse tipo de agressão. “Há uma combinação de fatores que levam ao bullying e não se pode dizer que seja apenas o aspecto físico o que determina isso – provavelmente a estrutura familiar e a personalidade também contam”, diz Kátia. Ela afirma que faltam pesquisas sérias que definam o perfil do agressor, e não descarta centrar-se nesse tema quando for fazer seu doutoramento.

Assédio moral

 

 

Nos ambientes profissionais encontramos muitas condutas abusivas, frequentemente intencionais, que têm por objetivo colocar a vítima para fora da empresa. Isso é bullying no trabalho, que em português costuma ser chamado de assédio moral, explica José Roberto Heloani, professor titular de psicologia do trabalho da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Ele ressalta que, embora haja pequenas diferenças conceituais e de nomenclatura entre diversas correntes de análise, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) recomenda que não se faça distinção entre bullying e assédio moral.

O bullying tem relação estreita com a forma como o trabalho é organizado, pois a competição exacerbada estimula o assédio. No ambiente profissional, podem ocorrer dois tipos de bullying: vertical, quando o chefe agride subalternos, ou horizontal, quando agressor e vítima estão no mesmo nível hierárquico. Este último não é tão raro como se pensa, pois a cultura altamente competitiva de hoje acaba impulsionando sua ocorrência dentro das empresas. “O assédio moral horizontal acontece em concordância com o vertical”, diz Heloani.

Os efeitos do bullying no trabalho são extremamente perversos. Incluem problemas psíquicos – depressão, sentimento de inutilidade, crises de choro e até ideias de suicídio – e físicos – taquicardia, tonturas, dores generalizadas, impotência, perturbações digestivas etc. Esses distúrbios, por sua vez, frequentemente são motivo de chacota por parte dos profissionais de saúde da própria organização. Há médicos que relutam em conceder licença por motivo de depressão, alegando que é frescura, do mesmo modo que alguns dizem que os casos de LER (LER/Dort – lesões por esforço repetitivo e distúrbios osteomusculares relacionados à prática laboral) são na verdade lerdeza... As pessoas também ficam irritadiças, não só no trabalho, e isso pode causar problemas sociais e familiares, inclusive divórcio. “Nesse ponto, o sujeito perde o último espaço de apoio, que é a família, e pode ser induzido ao suicídio”, diz o professor. Como exemplo, ele cita o caso da France Telecom, empresa com 180 mil funcionários, que registrou 35 suicídios no biênio 2008/09.

Heloani sustenta que o bullying no trabalho é um grave problema de ordem social e cita alguns dados que comprovam isso. Ele conta que o número de queixas de assédio moral no Ministério Público do Trabalho apenas no estado de São Paulo subiu de 23 em 2004 para 222 em 2009. “São poucas, porém, as pessoas que levam os processos até o final, porque é muito penoso para a vítima.” O professor entende que esse tipo de caso deveria ter prioridade de tramitação na Justiça, porque a vida da pessoa nessas circunstâncias corre risco.

Embora o ambiente competitivo esteja acirrando ainda mais o assédio moral dentro das empresas, muitas organizações, em vez de promover programas internos para prevenir o problema, estão fazendo seguro para cobrir indenizações por bullying, denuncia o professor. “No Brasil, foi lançada em 2009 uma apólice que cobre esse risco, o que é grave, porque evita que se invista em prevenção”, afirma Heloani, que é um dos organizadores do site www.assediomoral.org, especializado no tema.

Cyberbullying

 

 

Embora o bullying esteja presente há tempos, de forma quase invisível, em todo ambiente que concentre gente, hoje ele se amplia de forma avassaladora na internet. Assim, uma ofensa que ficaria escrita na porta de um banheiro, com a divulgação restrita aos frequentadores do local, vai para o Orkut ou alguma rede social e ganha o mundo. Com isso, seus efeitos se intensificam e se tornam mais duradouros.

O cyberbullying tem mecanismos específicos de atuação. O mais comum é a criação de uma comunidade do tipo “eu odeio fulano”, em que um indivíduo vai arrebanhando seguidores contra um desafeto, ou a elaboração de um perfil falso em uma comunidade social, em que a pessoa é apresentada com características depreciativas. “O potencial de dano do cyberbullying é maior do que o do bullying na vida real porque a informação contida na internet persegue a pessoa e fica lá, de forma indelével”, diz o promotor de justiça Augusto Eduardo de Souza Rossini, do Ministério Público do Estado de São Paulo, cujo tema de doutoramento são os crimes digitais. Ele cita o exemplo da cena “caliente” da apresentadora Daniela Cicarelli, veiculada no Youtube há algum tempo e que hoje ainda pode ser encontrada na web. “A internet foi criada sem controle das informações porque se dizia que seria censura, mas agora se pede que ele seja instituído, diante dos abusos que ocorrem”, diz Rossini.

O promotor afirma que o bullying nas escolas é democrático e atinge a todos, ricos ou pobres, mas o cyberbullying por enquanto é elitista, pois normalmente ocorre com a participação de alunos de escolas particulares. “Acredito que o algoz na internet é diferente daquele no ambiente escolar, porque o cyberbullying é uma agressão intelectual”, diz Rossini, que realiza uma pesquisa sobre o tema. “Na internet, os nerds, que normalmente são as vítimas na escola, viram algozes, e já ouvi um adolescente dizer que lá ele se vinga.” Rossini observa que, enquanto na escola o bullying é a exteriorização, por força física ou econômica, de um grupo contra um indivíduo hipossuficiente (sem condições de se defender), na internet a agressão é individual e ganha a adesão do coletivo.

Rossini explica que a legislação não fala em bullying nem em cyberbullying, e essa é uma das dificuldades para que a Justiça dê conta do problema. “Temos de buscar na lei o que pode ser considerado bullying ou cyberbullying, e normalmente são crimes de menor potencial ofensivo, a não ser quando resultam em suicídio”, diz. Por isso, quando chegam à Justiça, as denúncias de bullying costumam ter como pena a prestação de serviços comunitários ou indenizações. Normalmente, os casos acolhidos pelo Ministério Público envolvem adolescentes e são denunciados pelos pais. Já os adultos em geral não apresentam queixa na Justiça porque se sentem constrangidos, uma vez que isso daria publicidade ao caso.

Uma das dificuldades para combater o cyberbullying é que as denúncias dificilmente são documentadas. “A vítima manda um e-mail ao Orkut para que tire a ofensa do ar e vai depois à delegacia de polícia, que não encontra nada de errado quando acessa o perfil falso, por exemplo”, diz Rossini. Por isso, é preciso, antes de qualquer outra providência, anotar o endereço em questão, salvar tudo, imprimir e levar essa documentação para que a Justiça possa fazer seu trabalho.

Prevenção

 

 

Felizmente, o Brasil está despertando para o tema do assédio moral. Várias escolas particulares, que sabem que podem ser responsabilizadas por problemas devidos às agressões sofridas por alunos dentro de seus muros, já têm programas internos de prevenção. Começa a surgir também uma série de projetos antibullying nas redes públicas de ensino, muitos deles criados por lei. É o que ocorre em São Paulo, onde já se iniciou o treinamento de professores das escolas municipais. Vários estados brasileiros estão implantando projetos semelhantes, entre eles Pernambuco, Rio Grande do Sul, Alagoas e Paraíba. No Congresso Nacional, o deputado Carlos Eduardo Vieira da Cunha (PDT-RS) apresentou há um ano o projeto de lei 5.369/2009, que institui o Programa de Combate ao Bullying nas escolas em âmbito nacional. A proposta de Vieira da Cunha depende da apreciação das comissões de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Educação e Cultura, Finanças e Tributação e de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara e ainda não tem data para ser votada.

 

 

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