Um desperdício de talentos

29-08-2010 17:55

 


Luciana Pinheiro e os filhos
Foto: Marcelo Santos

Um desperdício de talentos

 

Escolas públicas não sabem o que fazer com os superdotados

 

MARCELO SANTOS

 

Ele era diferente dos demais alunos. Desde a pré-escola, nunca se encaixou no padrão de comportamento de meninos de sua idade. Quando ingressou no ensino fundamental, os pais foram chamados pelos professores, que, não sabendo lidar com a situação, acreditavam que ele tinha uma necessidade especial. E tinha mesmo.

Giovani Pinheiro, hoje com 12 anos de idade, sentia que era incompreendido. Nunca conseguiu prestar atenção por muito tempo nas aulas e passou a desenvolver depressão e a se autoflagelar. Na escola, os professores questionavam seus pais. “Eles achavam que estávamos com problemas de relacionamento” lembra a mãe, Luciana Raposo Pinheiro, de 37 anos, administradora de empresas.

Em meio ao caos que tomou conta da família, Luciana procurou ajuda e chegou a passar por mais de 15 profissionais, entre médicos e pedagogos. Gastou cerca de R$ 30 mil durante sua peregrinação, até que o diagnóstico de um neurologista acendeu uma luz de esperança. “Ele disse que meu filho não tinha problema algum e que apresentava traços de superdotação.” Assim, o garoto foi encaminhado para uma bateria de exames na Associação Paulista para Altas Habilidades/Superdotação (Apahsd), onde foi descoberta sua real condição: ele possui uma inteligência privilegiada.

Suas inquietações na escola ocorriam porque, para ele, tudo era demasiadamente desinteressante. Giovani assimilava as tarefas de maneira muito mais rápida que os demais colegas de classe. “Em cinco minutos ele entendia o que a professora levava quase uma hora para ensinar aos outros. Com tempo sobrando, ele não parava quieto”, conta Luciana, lembrando que desde os três anos de idade ele lia e desmontava e montava móveis em casa.

Muitos outros meninos e meninas que chegam à sede da associação – um sobrado na zona sul da cidade de São Paulo – apresentam histórico bastante parecido com o de Giovani. Alguns são até mesmo sedados. “É grande o número de crianças cujos pais não sabem mais o que fazer e optam pelo uso de medicamentos”, conta Ada Cristina Garcia Toscanini, presidente da Apahsd.

Na sede da associação, Ada conserva um arquivo com o perfil de 500 crianças matriculadas em escolas públicas. “Esses alunos foram mapeados para que pudéssemos provar para a Secretaria de Educação que tínhamos muito mais superdotados do que a estatística oficial dizia”, explica, para depois lamentar. “Infelizmente, de que adianta descobrir crianças com altas habilidades em escolas públicas se não temos o que fazer com elas ou mesmo para onde encaminhá-las?”

A realidade do portador de altas habilidades, ou superdotado, é bem menos glamourosa do que se vê na televisão. Boa parte dessas crianças desconhece sua real condição e vive privada de uma educação que potencialize suas qualidades. Segundo a definição do Ministério da Educação (MEC), o portador de altas habilidades é a pessoa que demonstra potencial elevado em uma ou mais áreas, como intelectual, acadêmica, de liderança, psicomotricidade e artes, além de apresentar grande criatividade, envolvimento na aprendizagem e na realização de tarefas em áreas de seu interesse. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que entre 3% e 5% da população de um país seja superdotada, levando em conta apenas o potencial cognitivo de cada um, aferido através de testes de quociente de inteligência (QI).

Para definir os alunos com altas habilidades, o MEC não considera apenas o teste de QI, criticado por boa parte dos especialistas da área de educação para superdotados por avaliar apenas a capacidade de raciocínio lógico e vocabulário acima da média. São levados em conta os conceitos apontados pelo psicólogo americano Howard Gardner, da Universidade de Harvard, o que poderia elevar o número de superdotados para 15% da população. Ele considera oito tipos de inteligência: verbal, musical, matemática, espacial, corporal, intrapessoal, interpessoal e naturalista (capacidade de compreender os fenômenos naturais).

Para comprovar a superdotação são necessários testes que avaliem se o aluno possui uma ou mais dessas habilidades acima da média, quando comparado aos pares da mesma idade, origem social e cultural. Concomitantemente, é preciso investigar se o estudante é perseverante até a conclusão de suas tarefas e criativo na solução dos desafios.

“Mesmo com todas as críticas feitas ao teste de QI, essa é a forma mais segura de determinar a superdotação. Não existem alternativas mais objetivas que essa”, afirma o neurocirurgião Joel Augusto Ribeiro Teixeira, membro e ex-presidente do Mensa no Brasil. A instituição é a mais conhecida sociedade de superdotados no mundo. Fundada em 1946, na Inglaterra, conta com mais de 100 mil membros, distribuídos em 40 países. No Brasil, são 300 associados, entre os quais o mais famoso é o roqueiro Roger Rocha Moreira, líder da banda Ultraje a Rigor, que alcançou 172 pontos no teste da entidade. “A média de inteligência é de 100 pontos no teste de quociente de inteligência. Para ser considerado superdotado é preciso alcançar mais de 130 pontos”, esclarece o neurocirurgião.

Avessa ao teste de QI, a professora Susana Graciela Pérez Barrera, presidente do Conselho Brasileiro para Superdotação (ConBraSD) e doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio Grande do Sul, queixa-se dos preconceitos a respeito do tema no país. “É comum associarem a superdotação às classes mais abastadas ou a alunos com QI alto. Já estive em escolas de periferia em que a diretora me disse que não existiam alunos com essas características ali.” Ela argumenta que apenas com o teste de QI é impossível descobrir talentos em todas as áreas do conhecimento. “Se você tiver uma Daiane dos Santos, como vai identificar, já que a área dela é o esporte? A avaliação deve ser integral”, afirma. Ela defende a desmistificação do tema através da capacitação “em massa” de educadores para que possam assim identificar os alunos com maiores habilidades e explorar melhor seus talentos.

Núcleos de atendimento

 

 

No ano de 2006, em cumprimento à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e às Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica, de 2001 – que previam disciplinas específicas sobre altas habilidades nos cursos de formação de professores e também diferenciações curriculares para os alunos –, o MEC anunciou a criação de Núcleos de Atividades de Altas Habilidades/Superdotação (Naah/s), que seriam instalados em espaços cedidos pelas secretarias de educação dos estados e do Distrito Federal.

Foram destinados R$ 2 milhões, na ocasião, à compra de equipamentos de informática, mobiliário e materiais pedagógicos. O investimento foi feito pela Secretaria de Educação Especial, responsável pela inclusão de superdotados e também de alunos com deficiências físicas e mentais. “A contraproposta das secretarias de educação que sediariam tais núcleos deveria ser disponibilizar profissionais para a atuação nesses locais, espaços físicos e condições para a manutenção das atividades”, explica Sinara Pollon Zardo, coordenadora geral de articulação da política de inclusão entre os sistemas de ensino do MEC.

Mesmo com a criação de núcleos em todas as capitais, o Censo Escolar de 2009 contou, entre os 52 milhões de alunos matriculados na educação básica (da creche ao ensino médio) de escolas públicas de todos os estados brasileiros, apenas 5.637 superdotados, ou seja, 0,01%.

O Naah/s de São Paulo é o que mais contabiliza estudantes com altas habilidades no sistema público de ensino no Brasil. São 837 alunos nas escolas estaduais, segundo Denise Rocha Belfort Arantes, psicóloga do Centro de Apoio Pedagógico Especializado (Cape) da Secretaria Estadual de Educação. “O núcleo funciona dentro do Cape e é um centro de referência para o professor. Não existe um orçamento específico para a superdotação, a totalidade dos recursos está inclusa na educação especial”, explica.

O Naah/s paulista treina os educadores que atuam na área de educação especial, ligados a uma das 91 delegacias de ensino existentes no estado. Cabe a esses profissionais repassar o conhecimento aos professores que atuam nas salas de aula. “Todos têm suas responsabilidades, inclusive a comunidade e a família do aluno. É preciso um esforço conjunto”, afirma Denise.

Segundo o documento orientador publicado pela Secretaria de Educação Especial do MEC e assinado pelo ministro Fernando Haddad, os Naah/s deveriam “atender os alunos com altas habilidades/superdotação, promover a formação e a capacitação dos professores e profissionais da educação para identificar e atender esses alunos, oferecer acompanhamento aos pais dessas crianças e à comunidade escolar em geral com o objetivo de produzir conhecimentos sobre o tema e colaborar na construção e disseminação de uma educação inclusiva e de qualidade”.

Porém, de acordo com Maria Izabel Azevedo Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), não está havendo um trabalho eficiente de capacitação. “O professor não sabe identificar um aluno com altas habilidades porque não está sendo treinado para isso”, observa. Segundo ela, o aluno superdotado tem de contar com a sorte de encontrar um educador que se interesse por sua condição. “Não devia ser assim. Era para todos os superdotados terem tratamento especial, afinal eles são diferentes, não há como negar.”

De acordo com a professora Christina Menna Barreto Cupertino, consultora do Programa Objetivo de Incentivo ao Talento (Poit), da rede Colégios Objetivo, existem três maneiras básicas de trabalhar com estudantes dotados de altas habilidades: segregação, aceleração e enriquecimento.

Na segregação, os alunos são separados em classes especiais. Já na aceleração, os estudantes são promovidos a turmas mais adequadas a seu desempenho, independentemente da idade e do ano letivo. Por fim, no enriquecimento, que é o método mais comum, o aluno permanece na mesma classe e ano letivo de sua idade, mas conta com programações extracurriculares.

Ex-consultora da Unesco, Christina dedica-se desde 1986 a estudar e a discutir a superdotação no país. Em sua opinião, o principal entrave está na falta de conhecimento sobre as necessidades especiais das pessoas com altas habilidades e aos mitos criados em torno dessa condição. “É a mesma lei, a mesma verba (destinada anualmente para as secretarias de educação especial), só que existem preconceitos muito grandes. Enquanto as faltas, as deficiências (físicas e intelectuais) recebem privilégios, um dos principais mitos sobre o portador de altas habilidades é que ‘ele já tem algo a mais; que se vire sozinho’. Isso não está certo.”

Ao se “virar sozinhos”, os melhores cérebros do país procuram direções onde possam exercer suas habilidades. “Quando é de classe média ou alta, ele costuma ter apoio da família, que, mesmo com dificuldades, investe no estudante. Quando vem de classes mais carentes, ele acaba desmotivado e desiste da escola. Pode até mesmo seguir para a marginalidade”, conta a presidente do ConBraSD, que identificou entre alunos de regiões carentes de Porto Alegre um percentual de 7,8% de superdotados. “Muitos, sem oportunidades, acabam seguindo por outros caminhos. O que dizer de grandes criminosos? São inteligências diferenciadas, só que canalizadas para o mal”, lamenta Susana Pérez.

Numa outra pesquisa, realizada dentro do Centro de Atendimento Socioeducativo do município de Santo Ângelo (RS), a professora Maria de Lourdes Lunkes de Souza, da Universidade Federal de Santa Maria, identificou entre os menores infratores um percentual de 10% de jovens com altas habilidades entre os 51 internos da unidade.

Iniciativas sociais

 

 

Para evitar esse drama, surgem no país algumas associações e ONGs que buscam dar uma oportunidade a talentos oriundos de famílias de baixa renda. Um desses trabalhos é desenvolvido através do Instituto Social Maria Telles (Ismart), que começou em 1999, na cidade do Rio de Janeiro, a garimpar estudantes superdotados entre as comunidades carentes. Graças a parcerias com colégios de alto nível da rede particular, os estudantes ganham bolsas de estudos para cursar o ensino médio. A iniciativa deu tão certo que foi estendida à capital paulista, Santos (SP), Sorocaba (SP), Cotia (SP) e Fortaleza. São 587 bolsistas financiados pelo instituto. “Selecionamos alunos que estão cursando o sétimo ano. Eles devem ter um potencial de aprendizagem diferenciado e motivação e capacidade de superar desafios. Nossos exames são muito criteriosos”, diz a educadora Inês França, dentro de uma sala cedida pelo Colégio Santo Américo, um dos mais tradicionais – e caros – da cidade de São Paulo. Lá, alunos carentes têm acesso aos recursos educacionais destinados aos filhos das famílias mais abastadas da cidade. “O financiamento é feito por pessoas físicas que acreditam em meritocracia, em igualdade de oportunidades, independentemente da classe social.”

Outro exemplo vem do Instituto Rogerio Steinberg (IRS), na cidade do Rio de Janeiro. Através de parcerias com a prefeitura, a instituição promove a capacitação de professores de 27 escolas da rede municipal. O treinamento ensina como identificar alunos superdotados. “Sabemos que, cada vez mais, o capital intelectual tem um papel estratégico e representa uma vantagem competitiva na geração de riquezas e desenvolvimento econômico dos países. Os alunos com altas habilidades são potenciais atores desse processo”, afirma Clara Steinberg, empresária do setor da construção civil e presidente do IRS.

Sua militância na área começou em 1997, 11 anos depois da morte prematura de seu filho, o premiado publicitário Rogerio Steinberg, aos 34 anos de idade. Essa perda impulsionou a empresária e seu marido, Jacob, a ajudar crianças talentosas que não dispunham das mesmas condições de acesso à educação que Rogerio teve para se desenvolver. Hoje o IRS contribui com mais de cem bolsas de ensino a alunos superdotados carentes. “Essa é uma área muito nova no país. Temos adultos com altas habilidades que se destacam em suas áreas e não necessariamente foram diagnosticados. Mas é claro que as habilidades poderiam ser mais estimuladas se conhecidas desde cedo”, avalia Clara, explicando que problemas emocionais e desajustes de comportamento social podem surgir em portadores de habilidades não desenvolvidas.

No extremo leste da capital paulista, no bairro de São Mateus, Pedro de Oliveira Alves, de 9 anos, é um dos muitos superdotados do país que não participam de nenhum programa governamental de incentivo ao talento. De família muito pobre, ele aprendeu a ler sozinho, aos dois anos e meio de idade. Sua avó, Gildete Abreu de Sousa Alves, de 58 anos, nem chegou a perceber. Ela, que cuida do menino desde seu nascimento, só estudou até a terceira série do ensino fundamental.

Pedro deseja estudar medicina. “Quero ser clínico geral e atender o maior número possível de pessoas”, diz, enquanto folheia uma revista. É fã da série literária Harry Potter e só mantém vivos seus planos e sonhos graças ao atendimento que recebe na Apahsd. Pedro é financiado por um doador anônimo, que custeia seu acompanhamento psicopedagógico e de enriquecimento escolar.

Todas as quartas-feiras, ele sai de casa às 5 horas da manhã e enfrenta ônibus e trens lotados na travessia da cidade até chegar à sede da associação. Lá, estuda espanhol. Pedro tem sorte, ao contrário de muitos que ainda esperam que seus talentos sejam descobertos e valorizados.

 

 

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